Jan Steen: um contador de histórias

No século XVII (anos 1600), Leiden se orgulhava dos “muitos pintores famosos e extremamente talentosos” que a cidade produzia. Devido a uma prosperidade recém-adquirida, a cidade se tornou um dos mais importantes centros artísticos do norte da Holanda. Pintores famosos como Rembrandt, Jan Lievens, Jan van Goyen, Jan Steen, Gerrit Dou e Frans van Mieris fizeram a Escola da ‘bela pintura’ de Leiden, não uma escola em termos físicos, mas um movimento artístico, um centro artístico internacionalmente conhecido. Novos temas e retratos, tipicamente de Leiden, foram introduzidos no mundo da arte. Lievens e Rembrandt tinham grandes aspirações no campo da arte da pintura da história tradicional. Mas eles também se concentraram em retratos, autorretratos e representações de pintores em seus estúdios. Van Goyen inovou com suas belas paisagens atmosféricas. A presença da universidade mais antiga da Holanda e um público de estudiosos, administradores e estudantes tiveram um papel importante na pintura de Leiden. Na segunda metade do século XVII, Gerrit Dou,  aluno de Rembrandt, com seus painéis de tirar o fôlego, foi um dos principais fundadores da “bela pintura” de Leiden que fez escola até o século XVIII.

Um desses artistas, nativo de Leiden, Jan Havicksz Steen (1625-1679), viajou por toda a Holanda e reuniu influências de várias fontes, especializando-se em temas como os caóticos encontros familiares da classe burguesa, representações da vida escolar, tabernas turbulentas, encontros amorosos, cenas dominadas por vícios da época. Tais temas tinham  conotações moralizantes, mas o resultado também era hilário. Steen era um contador de histórias nato, com um senso de humor admirável. Sua capacidade narrativa se reverbera na variedade de temas cotidianos representados em suas pinturas. Foi um dos artistas mais populares do Barroco Holandês no século XVII. Suas pinturas nos encantam e nos levam a pensar que ali naquelas cenas estão vestígios de sua própria vida. E são essas, as coisas simples da vida cotidiana, que existem em todas as épocas, em cada uma à sua maneira, que ainda nos fascinam, trezentos e quarenta anos após a morte do artista.

O padeiro Arent Oostwaard e sua esposa, Catharina Keizerswaard, 1658. Óleo sobre painel de madeira, 37,7 x 31,5 cm.

Aret Oostwaard e Catharina Keizerswaard, um padeiro de Leiden e sua esposa orgulhosamente oferecem seus produtos frescos. Um texto na parte de trás da pintura revela o nome do casal. Na porta da padaria, um garotinho toca uma buzina. No texto, o menino também é mencionado: é Thaddeus, o filho do casal. Jan Steen combinou vários temas em uma pintura. É um retrato, uma representação de uma profissão e uma natureza morta com vários tipos de pães e biscoitos. Acima da porta há videiras.

Em algumas de suas pinturas, Steen costumava fazer de si mesmo o alvo de suas próprias piadas. Para isso, colocava seu autorretrato no centro do caos doméstico, como na tela “A família desfeita”.

A família desfeita, c.1663-64. Óleo sobre tela, 108 x 90,2 cm.

O tema central é o envolvimento amoroso entre o dono da casa e a empregada. O senhor da casa é representado pelo próprio artista que entrelaça os dedos com os da empregada, que serve à sua esposa uma generosa quantidade de vinho. A dona da casa, absorvida no reabastecimento de seu copo de vinho, permanece alheia para perceber a cena que se desenrola ao seu lado. Pequenos eventos acontecem simultaneamente: um jarro quebrado alerta contra o comportamento desprezível dos dois; um gato doméstico travesso de olho em um pedaço de carne no chão e garotos brincalhões contribuem para controlar as questões emocionais presentes, tornando o ambiente mais leve.  Apesar disso, sugestões de um destino sinistro pairam literalmente sobre as cabeças da família, na forma de uma cesta que contém uma muleta, reveladora de uma fraqueza; uma espada que pode significar o dualismo entre a realidade e a condição humana; um feixe de varas que lembra a força da união e, o valete de espadas, significando infortúnio, devido às intrigas entre duas damas. Na Holanda, Steen está ao lado de Rembrandt, Vermeer e Hals em popularidade, e a expressão ‘casa de Jan Steen’ se tornou parte do idioma holandês para descrever o tipo de casa animada e desarrumada retratada em muitas de suas pinturas.

Detalhes da pintura “A família desfeita”, 1665-64

Jan Steen representa uma visão do caos que atropela uma família quando o “apetite” não é controlado. Um elegante arranjo de frutas representa a gula e a natureza potencialmente corrupta do luxo diante de um verdadeiro catálogo de vícios representados por vários objetos.

Segundo Arnold Houbraken (1660-1719), pintor e escritor holandês, lembrado principalmente como biógrafo de pintores holandeses do chamado ‘Século de Ouro’, as “pinturas de Steen são como o seu modo de vida e o seu modo de vida como as suas pinturas”, e em sua biografia ele se concentra no humor de sua obra. Porém, Steen, também pintou retratos, assuntos históricos, mitológicos e religiosos (ele era católico), e os animais, pássaros e detalhes de natureza morta em suas imagens rivalizam com os de qualquer um de seus contemporâneos. Mesmo suas pinturas mais cômicas costumam ter um tema subjacente sério, que evidencia a fragilidade humana. Ele estudou em Haia com Jan van Goyen e casou-se com a filha do artista. Não tinha alunos registrados, mas muitos tomavam seu trabalho como modelo.

Sobre Vânia Myrrha

Vânia Myrrha é arquiteta, professora de História da Arte e do Design da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais. Mestre em História da Arquitetura e Urbanismo-UFMG. Especialista em História da Arte pela PUC Minas. Especialista em Arte Contemporânea pelo IEC-Instituto de Educação Continuada-PUC Minas. Professora do Boteco d’Arte lugar de encontro para ver, conversar e aprender sobre arte e literatura.
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